A forma como falamos de testosterona — na medicina, na imprensa, no marketing e nas redes sociais — vai muito além da fisiologia. Ela ajuda a construir formas de ser homem, molda expectativas, cria ideais, medicaliza inseguranças e transforma um hormônio real em um símbolo cultural. A provocação central é simples: a ciência não apenas descreve o corpo masculino, mas também produz narrativas sobre a masculinidade.
A testosterona como discurso social
É impressionante como a testosterona se deslocou da endocrinologia para o imaginário coletivo. Ela passou a representar conceitos como:
• força
• vigor
• desejo
• produtividade
• virilidade
• performance
A medicina, a mídia e o mercado contribuem para essa transformação. O hipogonadismo real existe — e é sério —, mas muitas vezes se mistura com frustrações profissionais, estresse, inseguranças sexuais, expectativas de juventude eterna, medo de envelhecer e pressões sobre o papel do homem. A testosterona deixa de ser apenas tratamento e passa a ser identidade.
Hormônios não são roteiros de masculinidade
A testosterona influencia libido, humor, energia, força muscular e composição corporal. Porém, reduzir masculinidade a um valor laboratorial significa transformar emoções em déficit hormonal, vulnerabilidades em “falta de testosterona”, sofrimentos existenciais em “tratamento incompleto” e o envelhecimento natural em doença a ser corrigida. Quando vira explicação total, o hormônio também se converte em prisão.
A testosterona virou mais do que um hormônio: virou um discurso
• força
• vigor
• desejo
• produtividade
• virilidade
• performance
Hormônios não são roteiros de masculinidade. A testosterona influencia aspectos importantes do corpo e da mente, mas reduzir emoções e experiências humanas a exames laboratoriais cria uma visão limitada do masculino.
A medicalização do homem moderno
Há uma tendência crescente de transformar inseguranças masculinas em oportunidades de mercado. A promessa é sedutora: “você será mais jovem, mais forte, mais sexual, mais produtivo – basta repor”. O risco é criar homens dependentes de um marcador hormonal para validar o próprio valor. A ciência participa da construção dessas expectativas e reforça a ideia de performance, hiperpotência e estigma do envelhecimento. A prática madura é usar testosterona sem cair na armadilha cultural.
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A reposição é bem-vinda quando há:
• hipogonadismo verdadeiro
• sinais e sintomas consistentes
• avaliação clínica completa
• mudanças de estilo de vida associadas
• acompanhamento rigoroso
Mas deve evitar:
• promessas de super-homem
• tratamentos “anti-aging total”
• uso para resolver autoestima
• medicalização de estresse ou sedentarismo
• associação entre valor pessoal e testosterona alta
A boa medicina reconhece o valor do hormônio, mas não o trata como essência do masculino.
O que propomos, então? Uma medicina que integre corpo e identidade
A testosterona é um hormônio importante, mas a masculinidade é uma construção múltipla – histórica, social, psicológica, relacional e existencial. Tratar homens é tratar hormônios e também histórias, expectativas, medos e desejos. A maturidade clínica consiste em colocar a testosterona no seu devido lugar: importante, necessária e fisiológica, mas não definidora da identidade ou do valor de alguém.
Conclusão
A melhor medicina não fabrica masculinidades hormonais – ela cuida de homens reais, com dúvidas, vulnerabilidades, pressões, buscas e esperanças. A testosterona tem seu papel, mas não substitui propósito, afeto, autoconhecimento, intimidade, saúde mental ou a construção de uma vida plena. A ciência deve iluminar a saúde masculina – não moldá-la como mercadoria ou destino biológico.
Charles Rosenblatt é médico urologista, membro do corpo clínico do Hospital Albert Einstein e Rede D’Or São Luiz